Releituras anticoloniais e antirracistas de obras clássicas chegam ao Brasil na Temporada França-Brasil

Artistas estão recriando obras famosas com viés anticolonial e antirracista na Temporada França-Brasil. As exposições desafiam narrativas coloniais e racistas, propondo novas perspectivas sobre a história e a representação.

Releitura de obra clássicaCréditos: Agência Brasil

Artistas estão revisitando obras mundialmente famosas, especialmente aquelas do acervo do Museu do Louvre, em Paris, sob uma nova perspectiva que desafia narrativas coloniais e racistas. O artista beninense Roméo Mivekannin, por exemplo, utiliza tecidos como tela para recriar essas obras, substituindo personagens brancos por autorretratos, ressignificando a presença e a autoria nas representações. A exposição ‘O Averso do Tempo’, que fez sucesso no Louvre-Lens entre dezembro de 2024 e junho de 2025, está programada para chegar ao Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador, de agosto a novembro. Esta mostra faz parte da Temporada França-Brasil, um intercâmbio cultural entre os dois países.

As intervenções de Mivekannin levantam questões cruciais sobre quem pinta, quem é pintado, quem está presente e quem está ausente na obra de arte. Ao se inserir em releituras como a da ‘Balsa da Medusa’ de Théodore Géricault, ele propõe uma reescrita da história, ocupando os rostos dos sobreviventes do naufrágio que inspirou a obra original. Evelyne Reboul, gerente de atividades educativas do museu, destaca que o artista busca reescrever a história e provocar uma reflexão sobre os sistemas de dominação contemporâneos. A exposição convida o público a questionar suas próprias narrativas e a reavaliar a história sob novas lentes.

Nascido em 1986 na Costa do Marfim, Roméo Mivekannin vive e trabalha entre a França e o Benin. Sua formação em arquitetura e a influência da exposição ‘O Corpo Negro, de Géricault a Matisse’, no Museu D’Orsay, o levaram a iniciar sua jornada na pintura em 2019. A exposição em D’Orsay discutia a presença negra na arte, tema que se tornou central em sua obra. A ascendência real de Mivekannin também é um elemento importante de sua identidade e obra. Ele é descendente do último rei independente de Daomé, Behanzin, que governou o território antes de se tornar a colônia francesa de Benin.

Os materiais utilizados por Mivekannin também carregam simbolismo. Ao utilizar lençóis de segunda mão, adquiridos em brechós europeus e ritualmente purificados com ervas, ele subverte o uso tradicional desses tecidos em sua cultura, onde não devem ser reutilizados. Sobre esses lençóis, ele reescreve a história com suas pinturas. Em algumas obras, Mivekannin revela ter costurado cartas dentro dos lençóis, nas quais pede permissão aos personagens retratados para ocupar seus lugares. Essa prática está ligada ao vodu, religião originária do Benin, que ele não apenas pratica, mas também retrata em sua arte.

Outro destaque da exposição é a releitura do ‘Retrato de Madeleine’ de Marie-Guillemine Benoist, de 1800. Mivekannin substitui Madeleine por si mesmo, usando um turbante e encarando o observador. A obra original, que por muito tempo teve sua identidade desconhecida, foi renomeada em 2019, quando Madeleine foi identificada como uma mulher que foi de Guadalupe para a França após a abolição da escravidão em 1794 e trabalhou para a família Benoist. O tataravô de Mivekannin, o rei Behanzin, também é homenageado na exposição, aparecendo ao lado de sua esposa em uma fotografia na qual o artista se insere. Ele também se coloca em outra fotografia, que retrata mulheres negras e um colonizador branco. Mivekannin imita a expressão de uma das mulheres, que demonstra desconforto com a situação.

A exposição ‘Brasil Ilustrado – Um legado pós-colonial de Jean-Baptiste Debret’ também desafia o público a examinar criticamente as imagens produzidas pelo pintor francês sobre o Brasil entre 1816 e 1839. A mostra evidencia a violência presente nessas representações e propõe ressignificações. A exposição, apresentada em Paris, chegará ao Museu do Ipiranga, em São Paulo, juntamente com um colóquio e uma publicação sobre a obra de Debret, também como parte da Temporada França-Brasil.

Debret, que integrou a Missão Artística Francesa, retratou o cotidiano do Rio de Janeiro em uma sociedade escravocrata. Suas gravuras, que mostravam a violência contra pessoas negras, foram inicialmente censuradas na França e esquecidas até serem publicadas no Brasil em 1940. O pesquisador Jacques Leenhardt, curador da exposição, destaca que a violência retratada por Debret chocou a sociedade francesa, mas não teve o mesmo impacto no Brasil, onde era vista como corriqueira. Leenhardt ressalta que Debret constantemente enfatizava que o trabalho no Brasil era realizado por escravizados, enquanto os portugueses se dedicavam a atividades como comer doces. A exposição busca confrontar essa visão e destacar a importância do trabalho escravo na construção da sociedade brasileira.

A exposição reúne obras de 15 artistas brasileiros que dialogam com os desenhos de Debret. A obra ‘Retrato da Mãe e transformações’ (2022), de Eustáquio Neves, utiliza imagens da própria mãe em negativos fotográficos, inserindo gradualmente uma máscara de metal usada em pessoas escravizadas para impedir que comessem terra e se matassem. Ao lado, é apresentado o desenho de Debret que retrata a máscara. A obra ‘Trabalho’ (2017), de Jaime Lauriano, reúne elementos que reforçam o racismo presente na sociedade, como avisos de ‘A entrada de serviço é pelos fundos’ e uma lista de profissões frequentemente ocupadas por pessoas negras, como empacotador, faxineira, empregada doméstica, garçom e gari. Ele também utiliza objetos que normalizam os desenhos de Debret, como calendários e tapeçarias. Em ‘Espera da reza pro bater do tambor’ (2024), Gê Viana recria a obra de Debret, dando protagonismo às pessoas negras e inserindo elementos atuais, como equipamentos de som.

A Temporada França-Brasil 2025, um acordo firmado entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Emmanuel Macron, visa fortalecer as relações bilaterais entre os dois países, especialmente através da cultura. Os temas prioritários da Temporada são a diversidade das sociedades e o diálogo com a África, a democracia e o Estado de direito, e o clima e a transição ecológica. A programação, que ocorrerá de agosto a dezembro, será distribuída em 15 cidades brasileiras.

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